Bolsonaro aprova lei que permite internação involuntária de dependentes químicos
- maria machado
- 10 de jun. de 2019
- 5 min de leitura
Sanção é feita após polêmica entre governo federal e estudo realizado pela Fiocruz
Por: Gabriela Ferreira
Nesta quinta-feira, 5, o presidente Jair Bolsonaro (PSL) sancionou uma lei que autoriza
a internação sem consentimento de usuários de drogas. A Lei antidrogas foi publicada
pelo Diário Oficial da União e apresenta vetos em relação ao texto publicado pelo
Congresso. A aprovação ocorreu logo após a divulgação de um estudo efetuado pela
Fundação Oswaldo Cruz que revela não haver epidemia de drogas no Brasil
Proposta pelo deputado Osmar Terra (MDB-RS), atual ministro da cidadania, o projeto
de lei foi aprovado pela Câmara em 2013, mas só em maio de 2019 pelo Senado e pelo
presidente. A nova Lei antidrogas altera a Lei de Drogas de 2006 e outras 12 leis,
estabelecendo a permissão para que dependentes químicos sejam retidos em unidades de
saúde e hospitais gerais a pedido de um familiar, responsável legal ou mesmo servidor
público (servidor da área da saúde, assistência social ou de órgãos integrantes do Sistema
Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas, Sisnad).
A internação involuntária dependerá do aval de um médico e terá prazo máximo de 90
dias, tempo considerado necessário à desintoxicação. O Ministério e a Defensoria
Pública deverão ser informados da internação em até 72 horas e a retirada do paciente
pode ser requerida por familiares a qualquer momento. Os casos de internação
voluntária também dependerão de aprovação médica. No texto do Congresso havia
permissão para internação em casos de impossibilidade de avaliação médica por até sete
dias, mas o trecho foi vetado pelo presidente da república.
A nova proposta de internação involuntária já estava prevista na Lei de Reforma
psiquiátrica, de 2011, porém, o projeto de Osmar Terra inclui a medida na Lei de
Drogas e autoriza a solicitação por parte de servidores públicos. Além de proibir a
internação sem avaliação médica, Jair Bolsonaro vetou, também, outras medidas
aprovadas pelo Congresso. O projeto previa redução da pena de acordo com o volume
apreendido e o potencial lesivo da conduta e reserva de 3% das vagas de trabalho em
obras públicas para usuários atendidos pelo programa antidrogas, no entanto, Bolsonaro
retirou as decisões da lei em vigor.
A execução da lei está associada a um estudo sobre drogas, da Fiocruz, divulgado
recentemente pelo Intercep. A pesquisa da Fiocruz ouviu 16.273 pessoas em 351
cidades, e mostrou, através do levantamento, os padrões de consumo de drogas lícitas e
ilícitas. Contratado em 2015 pelo governo Dilma Rouseff e concluído no final de 2016,
o 3º Levantamento Nacional Domiciliar sobre o uso de drogas não foi divulgado pela
Secretaria Nacional de Política de Drogas (Senad), órgão da justiça que encomendou a
pesquisa. O governo alegou que decidiu embargar o estudo por conta de problemas em
sua metodologia, embora especialistas ativos da pesquisa afirmem que ela foi engavetada por contrariar o governo Temer.

(Fonte: TheIntercept)
Dados do levantamento mostram que 0,9% da população usou crack alguma vez na
vida, 0,3% fez uso no último ano e apenas 0,1% nos últimos 30 dias. No mesmo
período, a maconha, droga ilícita mais consumida, foi usada por 1,5%, e a cocaína,
por 0,3% dos brasileiros. De acordo com os pesquisadores, os índices não confirmam
a alegação de epidemia sustentada por Osmar Terra e, por isso, teria sido engavetada.
O levantamento foi solicitado para ajudar o governo a criar políticas brasileiras em
relação ao tema. A Fiocruz contratou quase 300 pesquisadores e técnicos, liderados
pelo epidemiologista Francisco Inácio Bastos, pós-doutor em saúde pública e autor de
mais de 290 artigos.
Além do Ministério da Justiça censurar a pesquisa da Fiocruz, divulgado apenas em
maio de 2019, o governo tirou do ar o site do Observatório Brasileiro de Políticas
sobre Drogas (Obid). O site dispõe de levantamentos nacionais sobre o uso de drogas
no país e é fonte de referência para profissionais da área da saúde. O Ministério da
Cidadania explicou que o site está sendo atualizado para adequação às demandas do
governo Bolsonaro.
Apesar da polêmica, a lei já está em processo de execução, já podendo haver ação
para internações voluntárias e involuntárias. As clínicas terapêuticas não estão
inclusas na possibilidade de internação involuntária, podendo abrigar apenas
pacientes com desejo próprio de se internar. De acordo com o texto divulgado pela
Diário Oficial da União, as clínicas servem de "etapa transitória para a reintegração
social e econômica do usuário de drogas" e devem exigir avaliação médica do
dependente.
A psicóloga Sandra Lima, formada pela Universidade Federal Fluminense, afirmou que não
importa se há ou não epidemia, os dependentes têm necessidade de tratamento e precisam de ajuda pois alcançam um nível em que não conseguem mais responder por si: "Quando você fica viciado, seu cérebro para de associar informações de forma consciente e responde pelo impulso que sobressai, que é o desejo. Então, se alguém diz que você precisa parar, você não assimila a informação por achar que está bem, mas é o desejo de consumir quem responde".
Sergio Dias, ex dependente químico que passou por reabilitação, foi internado por vontade
própria mas relatou que demorou muito para admitir que precisava de tratamento e que a lei o impediria de chegar ao ponto que chegou: "Eu perdi pessoas que amava, vi familiares desistindo de mim, gastei todo meu dinheiro e cheguei a morar na rua. Eu não conseguia buscar ajuda pois o vício já tinha tomado conta de mim. Foi depois de me ver sem nada que a ficha caiu". Sergio falou ainda sobre a dificuldade em reconstruir a vida e discordou do veto do presidente sob a lei que reservava 3% das vagas de trabalho em obras públicas para usuários atendidos pelo programa antidrogas: "É difícil achar um emprego agora, as pessoas ficam desconfiadas e a medida que o Bolsonaro vetou seria muito importante pra pessoas que, como eu, precisam recomeçar", concluiu Sérgio Dias.
A irmã de Sérdio, Sônia Dias, reforçou a importância da lei. Sônia falou que se sentia impotente diante do caso do irmão pois não podia interferir de forma mais ativa: "Eu pedia pra que ele se tratasse, tentava levar ele a clínicas de reabilitação, mas ele não queria, não era mais com meu irmão que eu conversava e sim com o vício. Vi ele perder tudo. Ele não tinha capacidade pra decidir que precisava ser internado mas eu sim, só não podia."
O advogado Marcelo Reis formado pela UFRJ chamou atenção para a liberdade do indivíduo prevista como direito no exercício à cidadania e relacionou-a com a nova Lei antidrogas. Marcelo declarou que o laudo médico pode assegurar que a pessoa esteja oferecendo risco a própria vida e/ou a do próximo, mas que antes disso, forçar a internação de alguém fere seus direitos a liberdade: "A vida é um direito do cidadão assim como o que fazer com ela, tem pessoas que tatuam a pele, tem pessoas que praticam esportes radicais com risco de vida pela adrenalina e tem pessoas que consomem drogas. Você não pode simplesmente forçar elas a parar, é preciso convencê-las de que precisam de ajuda.", alegou o advogado.
Cláudio Souza, ex dependente químico que passou pela clínica de reabilitação Sant Roman,
buscou tratamento por vontade própria e se mostrou contra a Lei antidrogas. Cláudio disse que sem entendimento da importância do tratamento, as chances de voltar a usar drogas são grandes. Destacando, ainda, a necessidade de um acompanhamento psicológico: "É preciso entender o porquê de precisar de tratamento, não adianta você tratar o vício e não o viciado. A mente é a mais afetada pela droga, se você interna alguém de maneira forçada, ela vai ficar revoltada e voltar a usar". Cláudio Souza afirmou, ainda, que se trata mais que tudo de uma questão social: "Isso só vai afetar os mais pobres, os mais vulneráveis. Essa possibilidade de internação sem consentimento por servidores públicos é para limpar a cidade, tratar a imagem dela. Vão levar todos de forma forçada e bruta, isso me lembra a ditadura", falou o ex dependente.
Epidemia ou não, a questão do uso de drogas gera por si só polêmica e divide opiniões em todos os âmbitos políticos e sociais, mas a possibilidade de não ser epidemia sobressai convicções de que a lei é um retrocesso e uma medida social, como é o caso de Cláudio Souza. Entretanto, o argumento de epidemia sustentado pelo ministro Osmar Terra faz prevalecer as posições favoráveis a Lei sancionada.
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